O isolamento social e restrição das atividades comerciais vêm gerando impactos diretos em todas as escalas da cadeia produtiva até destinatário final e ainda não é possível imaginar quanto tempo a pandemia e seus efeitos poderão durar.

Frente aos reflexos dos acontecimentos, como ficam as relações obrigacionais em pleno período de estado de calamidade decretado em razão da pandemia?

Na ânsia de minimizar os impactos da pandemia, medidas vêm sendo discutidas e editadas visando atenuar as consequências socioeconômicas, em caráter transitório, para enquanto vigorar a decretação do estado de calamidade.

Entre as medidas, destacamos o Projeto de Lei 1179/2020 aprovado pelo Senado no último dia 19 de maio, agora seguindo para sanção presidencial, instituindo normas em caráter transitório nas relações jurídicas de Direito Privado, como contratos de locação, relações de consumo. Entre os principais temas, destacamos:

  1. Na relação de consumo, suspensão até 30 de outubro de 2020 do direito de arrependimento para contratação de produtos ou serviços fora do estabelecimento comercial, previsto no artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor.
  2. Nos contratos locatícios, proibição à concessão de liminar para desocupação de imóvel urbano, nas ações de despejo, até 30 de outubro do corrente ano. A proibição somente é válida para ações protocoladas a partir de 20/03; ainda, possibilidade de suspensão do pagamento, total ou parcialmente, dos alugueres vencíveis a partir de 20/03 até 30/10;
  • Ficam excluídos, como causa para pedidos de revisão de contrato, os argumentos de aumento de inflação, variação cambial, desvalorização ou substituição do padrão monetário. A regra não é válida para os contratos guiados pelo CDC e Lei de Locações de Imóveis Urbanos;
  1. Suspensão dos prazos de aquisição para propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de usucapião, da vigência da lei até 30/10.

Outra medida que também merece destaque, é PL 1397/2020 aprovado pela Câmara dos Deputados no último dia 21/05/2020, com significativas proposituras para alteração do regime jurídico da Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência (Lei 11.101/2005), estabelecendo regras transitórias para execução de dívida e de garantias. PL agora segue para aprovação no Senado.

A principal consequência é a suspensão das ações judiciais de natureza executiva, que envolvam discussão ou cumprimento de obrigações vencidas após 20/03/2020, bem como ações revisionais de contrato. Ficam vedadas:

  1. Excussão judicial ou extrajudicial das garantias reais, fiduciárias, fidejussória e de coobrigações;
  2. Decretação de falência;
  • Despejo por falta de pagamento ou outro elemento econômico do contrato;
  1. Resolução unilateral de contratos bilaterais;
  2. Cobrança de multas.

A medida prevê o procedimento de jurisdição voluntária denominado negociação preventiva. Em suma, trata-se de procedimento a que o juiz nomeia negociador para a negociação preventiva da devedora com seus credores.

Terá direito à medida o devedor que comprovar redução igual ou superior a 30% de seu faturamento, comparado com a média do último trimestre correspondente de atividade no exercício anterior.

A pandemia está caracterizada como um fato imprevisível e de força maior. Da leitura da legislação vigente, extraem-se as consequências imediatas (i) liberação do devedor da responsabilidade pelos prejuízos; (ii) resolução ou reequilíbrio do contrato.

Dessa forma, o próprio Código Civil Brasileiro traz previsões de possíveis soluções a eventuais questões:

  1. O artigo 393 do Código Civil[1] afasta do devedor a responsabilidade do inadimplemento, podendo ser isentado do prejuízo ou ver reduzida equitativamente a cláusula penal.
  2. Nas obrigações decorrentes de contratos de execução continuada ou diferida, nos termos do artigo 478[2], os contratos poderão ser resolvidos, uma vez caracterizada a onerosidade excessiva.
  • Nos contratos de prestação de serviço, o artigo 607 do Código Civil[3] prevê como hipótese para término a ocorrência de força maior, se resultar na impossibilidade da continuação do contrato.
  1. As partes poderão, com base na teoria da imprevisão e da onerosidade excessiva, buscar revisar as relações obrigacionais, comprovada a mudança entre o estado de fato vigente à época da contratação e àquele transformado no momento do adimplemento da obrigação, por circunstâncias extraordinárias e imprevisíveis, conforme artigo 317 do Código Civil[4].

Evidentemente, o devedor deverá comprovar a relação direta do evento aos efeitos que ensejaram o inadimplemento e desequilíbrio contratual ou na sua impossibilidade de adimplir obrigação. O devedor que estiver em mora, não poderá se socorrer ao amparo legal. Tampouco se aproveitar de fato superveniente para se eximir pelo descumprimento anterior.

Embora as normas jurídicas possam, num primeiro momento, prever solução, a interpretação pode gerar divergência nos entendimentos. O objetivo do credor e devedor é manter a utilidade da relação obrigacional. O olhar rigoroso para as condições de negócio firmado sob outras circunstâncias, tornará dificultosa a solução e restabelecimento. Portanto, o movimento natural para apaziguar e defender objetivos das partes nos ajustes do pacto, será caso a caso, por composição.

[1] Artigo 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. Caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

[2] Artigo 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma da partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato.

[3] Artigo 607. O contrato de prestação de serviço acaba com a morte de qualquer das partes. Termina ainda, pelo escoamento do prazo, pela conclusão da obra, pela rescisão do contrato mediante aviso prévio, por inadimplemento de qualquer das partes ou pela impossibilidade da continuação do contrato, motivada por força maior

[4] Artigo 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação